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quinta-feira, 3 de novembro de 2011

P29BR 29ER TRIP / No Caminho de Santiago de Scott Scale 29 Pro - Dia 5

De Sahagún a Rabanal del Camino - 127Km

Cota mínima: 800 metros
Cota máxima: 1150 metros

 Crucero de Santo Toribio nas proximidades de Astorga

Ah, o Ziploc. Já ouvi muitos bikers afirmarem que a ferramenta mais útil para o ciclista são aquelas abraçadeiras plásticas conhecidas como "zip tie", com elas é possível realizar consertos de emergência de todo tipo. Durante minha cicloperegrinação pelo Caminho de Santiago, posso dizer, sem exageros, que usei algumas dezenas de abraçadeiras para os mais variados fins, de qualquer forma, um outro "zip" se mostrou imprescindível para mim, os sacos plásticos chamados de Ziploc. Vendidos em qualquer supermercado, esses sacos possuem um fecho dentado e se mostraram ótimos para manter meus pertences seguros, organizados e secos durante todo o trajeto. Quando você faz uma viagem como esta, precisa modificar alguns comportamentos de forma a não esquecer nada onde quer que seja. Aqui no Brasil, às vezes vou à padaria tomar café e esqueço de levar a carteira, por exemplo. Lá na Espanha, desde o primeiro dia de pedal, percebi a importância de estar 100% atento. Criei um check-list mental e após cada parada realizava essa checagem de todos os principais itens, como documentos, objetos pessoais, etc. Como nos albergues o fluxo de gente é sempre muito grande, conservava comigo em 100% do tempo meu passaporte, a credencial do peregrino, meus cartões de crédito e dinheiro. Por 100% do tempo, entenda-se inclusive na hora do banho e tudo mais, para viabilizar isso, o saco plástico Ziploc foi fundamental. Nos alforges eu tinha tudo separado, um saco para camisas, outro para bermudas, roupas sujas, objetos de higiene pessoal, comida e assim por diante. Assim se tornava mais fácil o ato de "levantar acampamento" e sair para mais um trecho no Caminho de Santiago.

Depois de 415 quilômetros rodados, eu poderia estar aqui enumerando os problemas técnicos enfrentados nesse longo trajeto, mas pra minha sorte, a realidade é completamente oposta. Para começar, ao contrário de meu parceiro de viagem, não fui agraciado com qualquer pneu furado. Os meus pneus sem câmaras estiveram sempre perfeitos, sem perdas de ar aparentes. Durante todo esse período de viagem me mantive firme no propósito de seguir uma regra básica e essencial do cicloturista, a de respeitar os limites de carga dos alforges, com isso evitei contratempos maiores e me mantive pedalando pelo máximo de tempo possível dia após dia. Quase todos os itens da bike funcionavam de maneira perfeita. Por outro lado, aqueles que acompanharam meus relatos dos dias anteriores, sabem que a alavanca do trocador traseiro começou a patinar e chegou nesse quinto dia praticamente sem subir o câmbio para as duas marchas mais leves, contudo considero esse um contratempo pequeno em função da dureza do Caminho de Santiago, nada que de fato pudesse abalar meu entusiasmo, maior a cada vez que eu me levantava para mais um dia de pedal.

Nesta manhã de domingo, deixei o albergue em Sahagún às 07:15h. O dia começava a clarear e logo me fez lembrar que em qualquer parte do mundo existe balada. Deixando a cidade, cruzei uma galera saindo de uma boite e, claro, quando avistaram a bandeira do Brasil na bike, todos tinham alguma palavra de incentivo ou mesmo uma gracinha para fazer.

O sol se levantava no horizonte, enquanto vencia um longo trecho plano de asfalto por uma estrada asfaltada onde não se viam carros, apenas peregrinos e alguns poucos pastores de ovelhas. Até a grande cidade de Leon não enfrentei grandes desafios, poucos povoados, algumas igrejas e muitas cegonhas morando nos telhados dessas igrejas. O relevo seco de planície, conhecido como Páramo de León não reservava muitas dificuldades para o peregrino e a temperatura felizmente não havia subido tanto durante o período da manhã.

Páramo de Leon

Os quase 60 quilômetros pedalados foram extremamente tranquilos. Logo na entrada de Leon uma equipe local dos bombeiros recebia os viajantes, carimbava as credenciais, dava informações e oferecia um mapa da cidade, mapa esse que por sinal eu não peguei, já que planejava cruzar Leon o mais rapidamente possível. Toda organização inicial contrastou com o que estava por vir. Entre todas as localidades que eu visitei, Leon tem talvez a pior sinalização para o peregrino. Pouco antes do centro da cidade eu já tinha me perdido. Uma opção seria voltar até reencontrar as setas amarelas, contudo preferi continuar. A essa altura já estava arrependido de não ter pego o mapa...

Perdido na cidade de Leon

Pedi informações e me mandaram pegar uma via super movimentada, o que logo descartei. Já tinha ouvido antes que para conseguir uma boa dica na Espanha, teria que perguntar sempre a mais de uma pessoa, na verdade a algumas várias. De qualquer forma dei sorte outra vez, achei uma ciclovia atravessando um parque municipal às margens do belo Rio Bernesgernesga, onde encontrei o Sr. Ángel, um bancário aposentado de nome muito sugestivo que se exercitava pedalando uma mountain bike.  O fato de eu ser um peregrino e, principalmente, brasileiro, facilitou mais uma vez na hora de conquistar uma nova amizade. Contrariando a fama dos espanhóis em geral, meu novo amigo se mostrou muito solícito e colaborativo, fez questão de me acompanhar de volta ao Caminho. Conversando com o Sr. Ángel enquanto pedalávamos por um cenário bastante agradável, percebi nitidamente como a vida de quem atinge a terceira idade na Europa pode ser muito mais saudável e tranquila que no Brasil. De volta à rota correta, me despedi daquele que me guiou através de Leon literalmente como um “ángel” da guarda e peguei estrada novamente para mais 50 quilômetros em direção à tradicional cidade de Astorga.

Ciclovia às margens do belo Rio Bernesgernesga en Leon

O sol já estava alto e os campos secos de planície começavam a dar lugar a uma paisagem mais verde. O relevo não era tão desafiador e desgastante, mas a fome já apertava. Só não contava com um ingrediente importante nesse domingo. Simplesmente não havia sequer um lugar para comer, povoado após povoado, tudo estava fechado, nem gente nas ruas, além dos próprios peregrinos, eu avistava. Cheguei então à minúscula San Matin del Camino, já era mais de meio-dia e três “niños” solitários brincavam na praça. Perguntei por um bar e me indicaram um tipo de lanchonete com um visual meio americanizado, um ar de decadência, mas com uma aparência limpa, ainda que desgastada pelo tempo. Lá dentro dois peregrinos e mais o balconista-garçom-proprietário, ele assistia um tipo de Domingão do Faustão na TV, me dei conta que esses melancólicos programas de domingo também existem no dito Primeiro Mundo. No bar, nada de cardápio, o cliente dizia o que queria e o “Tio” dava um jeito de fazer. Pedi a já tradicional tortilla, acompanha de chorizo. A casa do proprietário era junto do bar e ele entrou para chamar a esposa. Minutos depois ela me aparece com um omelete de linguiça, tipo aqueles que minha avó fazia. Logicamente estava ótimo, ainda mais acompanhado de algumas garrafinhas de Coca-Cola para espantar o calor. Antes que você, blog-leitor que acompanha os relatos do Caminho, me considere um viciado nesse delicioso refrigerante, lembro que lá na Espanha  eles são vendidos em garrafas muito pequenas, com apenas 200ml.

Campo de girassóis nas imediações de Puente de Órbigo

Depois de me abastecer e divertir na lanchonete, parti com destino a mais uma cidade de grande representatividade na Rota Jacobea, Astorga. Nascida como um acampamento romano no século I antes de Cristo, essa incrível localidade conta com um patrimônio cultural e arquitetônico riquíssimo, atraindo grande quantidade de turistas de toda Europa. Contudo teria que antes cruzar Puente de Órbigo, uma localidade estratégica militarmente falando, com registros de batalhas no século XII e uma extensa e impressionante ponte de pedra, que dá nome ao povoado.

Ponte que dá nome à cidade de Puente de Órbigo

Deixando para trás a aridez do Páramo, pouco antes das 14 horas encontrei o Crucero de Santo Toribio no alto da colina de onde já se avistava a imponente Astorga. Na entrada da cidade cruzei com uma centena de pessoas num tipo de romaria. Chegando à praça central, percebi então que não se tratava de um dia comum na vida do morador local. Juro que me senti em plena Idade Média, os habitantes de Astorga estavam todos caracterizados, era o dia das Fiestas de Astures e Romanos, marcado pela encenação de uma famosa batalha pela conquista da região.

Palácio Episcopal de Astorga

Quando acordei nesse domingo, quinto dia de viagem, a idéia inicial era a de pelo menos chegar até Astoga, contudo agora o horário estava a meu favor. Decidi então começar a subir e terminar o dia mais próximo possível da Cruz de Ferro, talvez o ponto de maior energia de todo o Caminho, um marco para todos os peregrinos rumando a Santiago de Compostela. Sob um sol escaldante, decidi pedalar até a pequena Rabanal del Camino, localizada a mais de 1.100 metros de altitude. Os 20 quilômetros que separam Rabanal de Astorga foram desafiadores. Começaram por um trecho de trilha, depois seguiam em subida constante, paralelos a uma estrada com um asfalto fumegante. Estava de fato tão quente que meus pneus deixaram suas marcas no asfalto quase derretido. Nas proximidades do meu destino final, uma trilha inclinada com solo pedregoso aguardava os viajantes. Mais uma vez minhas rodas grandes ignoraram as pedras e segui firme até meu destino final.

Asfalto derretendo na estrada para Rabanal del Camino

Fazia uma tarde linda quando entrei no povoado de Rabanal del Camino, ruas de pedra, casas de pedra e uma ar de montanha dos mais agradáveis, tornavam ainda melhor aquela sensação de dever cumprindo, um prazer especial que toma conta do peregrino a cada vez que se conclui uma etapa do Caminho de Santiago.

Trilha de pedra na chegada a Rabanal del Camino

Depois de quase 130Km pedalados me esperava simplesmente a melhor hospedagem entre todas as que conheci no decorrer da viagem, o Albergue La Senda. Fiquei num quarto com vários italianos e uma americana. O beliche era confortável, havia roupa de cama limpa e até cobertor. O banheiro privativo, com vaso sanitário e uma ducha relaxante, podia ser considerado uma raridade em se tratando de albergues. Havia máquina de lavar roupas, computador com internet e webcam. Ao lado do albergue, um bar com comida e bebida. Só que o mais legal, ainda estava por vir, as bikes ficavam guardadas e trancadas num chalezinho do outro lado da rua, junto a ele, um lounge enorme com espreguiçadeiras e, pasmem, uma tenda com equipe de massagistas prontos para atender aos peregrinos por um preço simbólico.

Albergue La Senda

Depois de um mega banho de mais de meia hora, fui à massagista, não iria deixar passar essa de jeito nenhum. Escolhi 15 minutos de massagem nas pernas, o que foi sensacional naquela altura da viagem. Perto das 18 horas, o sol ainda brilhava forte, fiz uma videoconferência com minha família no Brasil, passei filtro solar e fui jantar. Optei pelo “menu” do hotel da cidade. Por 12 Euros fui superbem atendido e pude escolher dois pratos, mais a sobremesa. Começei com uma sopa de frutos do mar, passei para uma truta recheada com jamón e terminei meu jantar de rei com um mousse de chocolate.

Lounge do Albergue La Senda

Não podia reclamar, tudo estava quase perfeito, mas ainda assim uma coisa me preocupava. A bateria da minha câmera fotográfica estava dando os últimos suspiros, por isso tive que tirar um número bem menor de fotos nesse quinto dia. Eu esqueci de levar comigo um imprescindível adaptador de tomadas para o padrão europeu e meu carregador era padrão americano. Nos últimos dois dias tentei em vão encontrar um desses adaptadores para comprar. Me preocupava o fato de justo no sexto dia, quando cruzaria dois pontos chave do Caminho, a Cruz de Ferro e O Cebreiro, estar ameaçado de não poder registrar nenhuma imagem desses lugares tão especiais.

O que aconteceu você ficará sabendo no próximo relato, mas posso adiantar que no Caminho a sorte está invariavelmente ao lado do peregrino!

Continue acompanhando no P29BR os relatos da cicloviagem ao Caminho de Santiago.

Keep 29eriding!

Mais fotos em meu Facebook.

12 comentários:

  1. Poxa, estava ansiosa pra continuar lendo os relatos! Que experiência maravilhosa!! Fico esperando o próximo dia de viagem!

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  2. Olá Adil, estou gostando muito de acompanhar o seu relato! Toda vez que leio mais um capítulo do "No Caminho de Santiago" a vontade de fazer uma ciclo-viagem aumenta. Que venha o próximo capitúlo e o próximo livro! No final, você poderia fazer um balanço dos seus gastos, com viagem de ida e volta, os gastos com as hospedagem, alimentação!
    Grato
    Tiago Tofanetto

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  3. Adil,

    estou acompanhando seu relato do Caminho de Santiago com muito gosto e sempre com ansiedade para saber dos próximos capítulos.

    Gostaria de saber um pouco mais sobre a bagagem que você levou na viagem. Percebi que seus alforges eram bem pequenos e, pelos meus cálculos, acredito que você estava carregando no máximo uns 15Kg de carga.

    Se possível, num futuro post, conte-nos um pouco mais da sua preparação, logística e parte técnica da viagem. Acredito que os futuros cicloviajantes ficarão muito gratos e estimulados.

    Grande abraço!

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  4. Sacana! Não avisou que havia colocado o post no ar! :\
    ahahaha!
    E eu aqui, todo ansioso pra ler o relato...

    Sensacional, meu caro! Lindíssimas fotos!
    Quer dizer que você deixou "sua impressão" no asfalto?
    Não consigo imaginar o calor necessário pra deixar o asfalto mole daquele jeito...

    Abração!

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  5. Olá Maya, amiga e companheira de cicloturismo,

    O próximo dia de viagem foi lindo demais!

    Na semana que vem publico o relato.

    Abs,

    Adil

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  6. Olá Tiago,

    Grande idéia, no final dos relatos vou seguir sua dica e fazer um post mostrando gastos e logística para a viagem.

    Abs,

    Adil

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  7. Olá Ronaldo,

    Mais uma ótima sugestão, vou contar como me preparei e falar sobre a bagagem.

    Realmente não levei mais de 15Kg e isso foi fundamental para conseguir cumprir meu planejamento.

    Abs,

    Adil

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  8. Valeu por acompanhar sempre, Luiz Fernando!

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  9. Fala Fabião,

    O calor nesse dia em particular estava de fato muito forte, mas a chegada a Rabanal valeu todo o esforço.

    O Caminho de Santiago sempre reserva surpresas e deixa boas lembranças dia após dia.

    Você e a Maya precisam ir.

    Abs,

    Adil

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  10. Muito bom como sempre!

    E que calor foi esse? Eu já teria derretido juntamente com o coitado do asfalto!!!!

    Bom, também vou fazer um pedido.... queremos ver o mapa da aventura!

    Abração!

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  11. Amigo Claudio,

    No final desta semana deve estar publicado mais um cápitulo da viagem. Seguindo sua sugestão, vou incluir mapa e altimetria se possível.

    Abs,

    Adil

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